Peças do Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso no Grand Palais
Um século depois do desaparecimento de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), o Grand Palais, em Paris, dedica-lhe uma grande exposição, de 20 de abril a 18 julho, que vai reunir cerca de duas centenas de obras do artista e de autores do seu círculo próximo, como Brancusi, Modigliani, Robert e Sonia Delaunay.
O Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso (MMASC) contribuiu com 20 peças da sua exposição permanente, entre pinturas, desenhos e caricaturas, correspondentes a diferentes fases da vida artística de Amadeo. Peças essas que viajarão até Paris.
Em todo o século XX não existirá exemplo mais surpreendente de um artista maior caído no esquecimento do que o de Amadeo de Souza-Cardoso. Figura ímpar da vanguarda modernista parisiense, deixou uma obra fulgurante, cúmplice de todas as revoluções estéticas do seu tempo e, simultaneamente, absolutamente única e original. A sua morte prematura, aos 30 anos, no final da I Guerra Mundial, afastou-o da consagração artística e da história de arte internacional.
A mostra, apresentada numa das salas mais emblemáticas e mais visitadas da capital parisiense, constitui uma grande oportunidade para revelar internacionalmente “um dos segredos mais bem guardados da arte moderna”, citando o historiador de arte norte-americano Robert Loescher.
A curadoria é de Helena de Freitas, uma das maiores especialistas da obra de Amadeo, coordenadora do catálogo raisonné do artista editado pela Fundação Gulbenkian e responsável pela exposição Diálogo de Vanguardas, que aquela instituição apresentou em 2006, e que se tornou a exposição de arte mais visitada da história da instituição.
Paris e Manhufe
A vida de Souza-Cardoso foi curta e intensa, destacando-se dois períodos decisivos, assinalados nesta exposição no Grand Palais: a vida em Paris (1906-1914) e o regresso à sua terra natal, Manhufe (1914-1918). Durante este período de pouco mais de uma década, o artista vive entre estes dois mundos, entre viagens de idas e vindas, permanentemente insatisfeito, desejando estar onde não está e em permanente instabilidade geográfica.
Filho de uma família tradicional de burguesia rural abastada, Amadeo parte para a capital francesa numa situação financeira confortável, ao contrário de muitos dos seus compatriotas, de quem irá rapidamente afastar-se. Em Paris, centro eufórico de todas as ruturas, orienta a sua curiosidade para os artistas que rompem com os cânones de representação clássica. Amadeo foi também autor dessas ruturas, e entra no circuito internacional, desenvolvendo um diálogo criativo com os seus companheiros de trabalho: Modigliani, Brancusi, Archipenko, o casal Delaunay, Otto Freundlich, Boccioni, entre outros, criando redes com agentes artísticos, editores ou curadores como Walter Pach, Wilhelm Niemeyer, Ludwig Neitzel, Herwald Walden, Adolphe Basler, Harriet Bryant (proprietária das Carroll Galleries em Nova Iorque).
A sua integração na dinâmica artística da vanguarda internacional é também confirmada pelo percurso expositivo de grande notoriedade que desenvolveu nesse breve período. Participou em salões franceses marcantes para a afirmação das novas propostas artísticas, como o Salon des indépendants (1911, 1912) e o X Salon d’Automne (1912), que teve precisamente lugar no Grand Palais, onde expôs a obra Avant la Corrida, uma tela que seria exposta também em Nova Iorque, na célebre exposição do Armory Show, em 1913. Essa obra causou uma enorme sensação, tal como as outras pinturas aí apresentadas (Amadeo vendeu sete dos oito trabalhos expostos, três dos quais se encontram atualmente no Art Institute of Chicago).
Um artista, identidade Plural
O lugar de partida (a pequena aldeia de Manhufe, em Amarante) é a primeira marca de identidade do artista e persiste como matriz ao longo das múltiplas etapas do seu trabalho. Mas “lugar” não é aqui apenas paisagem ou representação da natureza; antes engloba aquilo que Amadeo considerava, ao mesmo tempo, ser sua pertença: a paisagem natural, mas também a cultural. E foi sobre ela que exerceu uma ação transformadora sobre o que poderia ser um conjunto de signos conservadores e imutáveis: montanhas e objetos quotidianos, letras de canções e bonecas populares, instrumentos musicais regionais, azenhas, castelos imaginados e interiores domésticos familiares, bosques e tipologias humanas locais.
Estes variados elementos são representados segundo soluções estilísticas marcadas pelo hibridismo cubista, futurista, órfico e expressionista que percorre a sua obra. Amadeo incorpora os elementos do mundo rural e familiar e os elementos característicos do mundo moderno numa mesma dinâmica e, sem hierarquia explícita, atinge um momento em que cruza o lugar de origem com a vertigem das máquinas, dos manequins mecânicos, dos fios de telégrafo e telefone, das lâmpadas elétricas e reclames publicitários, das emissões de rádio, dos perfumes, do champanhe.
Urbano por determinação, o artista manteve-se ligado ao movimento ondulatório das suas montanhas que repetidamente pinta e servem de “fundo” a obras de muitas das fases. E é sobre estas montanhas que se faz autorrepresentar, vestido de pintor à maneira de El Greco.
O espaço de representação parece não chegar para tudo o que o artista nele quer colocar, integrando (também como colagem) muitos objetos, locais ou urbanos, num singular jogo combinatório. Também a importância da palavra e o uso das letras na pintura releva do encontro com as novas práticas artísticas contemporâneas. As letras/palavras, aplicadas em pochoirs de cartão ou zinco (encomendadas ou feitas por ele), introduzem mais elementos de polissemia na pintura, facilitando as referências à publicidade industrial (“Barrett”, “Wotan”) e comercial (“Coty”, “Brut”, “300”, “Eclypse”), mas deixando-as sem um claro papel narrativo ou ilustrativo na pintura.
Amadeo desvia os sentidos originais, tal como faz com as formas: os seus discos cromáticos podem ser alvos coloridos, de feira ou de guerra; ou podem ser pires de faiança popular onde caem insetos.
Esta sucessão de indícios de incorporação do mundo novo reforça a convicção de que Amadeo tem consciência ativa do que é ser “moderno”, não apenas nos temas (exaltação da mecanização do natural e do humano), como também nos métodos e técnicas que usa para os tratar, ou ainda na vontade de dar-se a conhecer através da promoção de uma imagem pessoal (com o recurso à edição divulgadora dos XX Dessins ou das 12 Reproductions, ou do carimbo da sua própria assinatura).
A sua morte prematura, aos 30 anos, vítima de epidemia de gripe espanhola, contribuiu para um progressivo esquecimento da sua obra a nível internacional, que esta exposição, um século depois, pretende resgatar.
Num espaço autónomo, mas em articulação visual com as restantes salas, será apresentado um trabalho encomendado ao artista plástico Nuno Cera, Tour d’Horizon, uma instalação vídeo, criação original em HD com 3 canais sincronizados, a partir da paisagem/lugar na obra e no universo de criação de Amadeo de Souza-Cardoso.
(*Com Fundação Calouste Gulbenkian)